quarta-feira, 21 de abril de 2010

Capítulo Dezenove.

Eu olhava para o relógio incessantemente.
Agora eram 15:57.
Tentava me acalmar. Prestar atenção na extensa linha da calçada, na fachada dos prédios a minha volta, na idade dos bancos e dos riscos no asfalto. Pensar educadamente – ou não – na forma que tal pessoa anda, ou no jeito que seus olhos vagam pelo concreto, ou das roupas daquele sujeito maníaco. Fixar a mente em um ponto qualquer, um pássaro disperso, uma seqüência de buzinas ritmadas, um arrastar de carros apressados demais para meu gosto.
Porque agora eram 16hrs em ponto, e fazia 2 semanas que eu não via Rick. Que não sentia o cheiro denso de menta e álcool daquele lugar fechado, escondido do universo e dos olhos mortais. Duas semanas longe do que eu chamava de paz.
Eu podia muito bem encarar a porta a minha frente e sorrir. Era uma quarta feira quente. O vento frio que perturbara a tudo e todos nos dias insondáveis haviam desaparecido, mas a umidade penetrava em nossos poros e grudava em nossas peles agora.
A velha e danificada porta parecia estar alegre em me ver, assim como eu estava.
Girei a maçaneta gelada e a porta estremeceu, chorou e rangeu para ser aberta. Fechei-a atrás de mim, despedindo-me por algumas horas de um mundo que eu, sem duvida alguma, gostaria de deixar para trás.
Respirei fundo estando dentro dali. A menta. O tabaco. O álcool. Esses doentis aromas preencheram-me por inteira. Parecia que apenas aquilo me faria sobreviver.
Subi as escadas, e usualmente, prendi meu longo cabelo em um nó gigante no topo da cabeça.
Não havia som, tirando meus passos e minha respiração. Ou eu não ouvia por causa de meu coração. Tentei me concentrar o máximo que pude, e ouvi os passos na madeira lisa. Senti, por fim, a longa fileira de dentes aparecendo em meu sorriso.
Antes que a escada chegasse ao fim, os passos pararam. Perguntei-me se Rick teria ouvido minha respiração, ou meus passos nos degraus, ou a porta bater.
Quando cheguei ao fim dos degraus, o vislumbrei. Meu coração parou de bater no mesmo segundo.
Ele estava de costas para mim, mexendo em algo. Logo, ouvi o tilintar do metal do isqueiro e a fumaça saindo depois da primeira tragada. Pegou uma garrafa – cujo rótulo aparentava ser mais velho que o próprio Rick, baseando-se a impossibilidade de lê-lo – e derramou um pouco do vinho barato em um copo pequeno.
Ele não sabia que eu estava ali.
Então aproveitei o gostinho momentâneo de observá-lo.
As mangas da camiseta cinza escura estavam arriadas nos ombros, e com sua coluna arqueada para frente, os músculos nas costas sobressaiam. A luz que vinha da janela deixava seus cabelos em um tom de castanho mais claro do que qualquer outro. A fumaça, que saia de sua boca, circulava e serpenteava no ar até sumir, contrastando com a escuridão dos cantos da sala.
Eu não via jeito de avisá-lo que estava ali.
De repente, deu sua última tragada e amassou o resto das cinzas no cinzeiro. Passou as mãos no cabelo e chacoalhou a cabeça. Apertou um botão no som e fez movimentos circulares com os ombros.
E começou a dançar para ele mesmo.
Não se virava em nenhum momento. Na única vez que virou, estava de olhos fechados. Não sentiu minha presença, não ouviu meus passos muito menos minha respiração.
Tive uma idéia.
Muito calmamente, coloquei minha bolsa no chão. No metrô já havia colocado os sapatos – a empolgação não parava de soltar adrenalina. Tirei o casaco prendendo a respiração, torcendo para ele não ouvir nada.
Seus pés desfilavam. Seu corpo se movia rapidamente, na mesma batida que a música. Era uma valsa remixada. Uma música comum, em tempo de valsa, só que totalmente sem aparentar sua classe. E valsa não se dança sozinho.
Começou a dançar para o meio do salão. Quando girou, seus olhos continuavam fechados, bem apertados. As esmeraldas ainda não estavam à mostra.
Caminhei suavemente até perto dele.
E por um momento pensei que, talvez, mas só talvez, ele soubesse que eu estava ali, porque suas mãos imitaram a posição com uma parceria. Segurando sua mão e sua cintura.
Parecia até que sabia de meu plano.
Porque bastou uma volta para mais perto de onde estava, e eu me localizava em seus braços. Uma força inexistente em mim impediu-me de qualquer vergonha, e com o embalar da música, eu estava em sintonia.
Abri meus olhos, tão apertados quanto os seus, e vi.
Rick não abrira os olhos.
Mas agora estava sorrindo maliciosamente.
Ele sabia? Perguntei-me. Ele simplesmente sabia?
Puxou-me para perto, e estávamos dançando, depois de tanto tempo – para mim. Mas naquela hora, enquanto meus ouvidos estavam submergidos em melodia, harmonia e hiatos a felicidade, eu queria saber dele. Se ele gostava daquilo tanto quanto eu. Se ele se sentia em paz tanto quanto eu sempre me sentia. Se ele estava sozinho nesse mundo. Se ele sempre fora daqui. Se dançar, para ele, era apenas como trabalho. Até mesmo se cigarros, vinhos baratos e balas de menta eram seu vício.
Mesmo assim, algo em mim dizia que não era certo. Que os Se poderiam acabar com toda a magia que envolvia o estúdio. Toda a fascinação, necessidade e perfeição daquele lugar. Todo o mistério do estilo de música mais envolvente e apaixonado.
Deixei os Se de lado por um instante.
A música estava acabando. Nossos passos pareciam os mesmos – os passos básicos de valsa. Os últimos arranjos seriam dados, e estava acabada.
Era o que eu pensava.
A valsa dera uma pausa, a necessária para mudar de compasso, ritmo e estilo musical. Aquilo não era mais uma valsa moderna remixada. Era um tango moderno.
Nesse momento, eu olhava para Rick, assustada. No segundo exato que a “nova” música começou, as esmeraldas apareceram reluzentes e cheias de segredos. Uma onda de antecipação me tomou por completo depois do susto.
E voltamos a dançar que nem antigamente.
Sem palavras. Só olhares, toques e respirações.
Seus dedos tingiram linhas intermináveis em minhas costas enquanto girava-me. Nossos olhos não se desgrudavam um segundo se quer. Aquelas adoradas esmeraldas pareciam sufocar-me.
Em um errático solo de violinos e violoncelos, trouxe-me para mais perto, projetando seus lábios para tão perto de minha orelha esquerda quanto podia. Expirou profundamente. Ainda bem que estava presa por seus braços – eu teria despencado com as pernas bambas.
Uma frase de Sam ecoou em minha mente.
Você tem o Rick, não é mesmo?
Eu não sabia ao certo a resposta. Quando dançou para si mesmo (ok, encarando os fatos, talvez ele não estivesse dançando realmente para sim mesmo.) parecia tão... Suficiente. Tão “dele” mesmo. Não parecia se importar com qualquer outra coisa, com qualquer outra pessoa.
Até perguntei-me se ele era capaz de me ver com outros olhos.
Pelo amor de deus, não.
Absorta em pensamentos, deixando para meu corpo e mente cuidarem dos passos de tango, não percebi o término da música tão próximo.
Durou o tempo para nossos olhos se encontrarem novamente e a frenesi parar.
Rick sorriu de orelha a orelha.
Tipo, ok, e como eu fico respirando casualmente?
“Você reapareceu.” Riu um pouquinho, desviando o olhar, encarando o entardecer alaranjado. “Pensei que nunca mais a veria.”
“Eu estava com alguns problemas.” Rezei para que não tivesse percebido o quanto minha voz e pernas tremiam.
“Problemas duradouros.” Não aparentava uma pergunta.
“Talvez eternos.” Suspirei com a lembrança de minha quase depressão. “Fixos.”
“Irreparáveis?” Sua sobrancelha arqueou.
“Talvez.”
“Irreversíveis?”
“...Eu tenho tentado fugir do assunto a dias.” Isso era um tipo de teste?
Olhou-me com desdém.
“Sim, irreversíveis!” bufei, dirigindo-me ao sofá. Dar as costas para ele seria um ótimo jeito de respirar agora.
Peguei minha bolsa e o casaco do chão e sentei-me no acolchoado. Tirei o elástico que prendia o cabelo e suguei o máximo de ar que meus pulmões agüentavam. No entanto, Rick fora para o outro lado, para fazer o de sempre – era tão confortável poder dizer isso, depois de uma rotina tão arriscada.
Cigarro na boca, isqueiro na mão, tragada, fumaça.
Fazia tanto tempo que eu não colocava um cigarro na boca.
Desloquei propositalmente meus olhos dele, e pus-me a difícil tarefa de achar meus All Stars e meu iPod na bolsa.
“Você precisa de uma saia.” Rick disse do nada.
“O quê?” eu havia ouvido. Só não havia entendido.
Deu uma última tragada, revirando os olhos e jogou o toco de cigarro no cinzeiro.
“É tango. Você precisa ter algo para mover além de seu olhar.” Olhou-me com olhos estranhos. Uma emoção nova. Outra para eu desvendar.
“Ah.” Não conseguia visualizar a saia adequada. “Mas não tenho a mínima idéia de como ela precisa ser.”
“Eu cuido disso.” Disse ele, já pegando outro cigarro e sorrindo maravilhosamente. “Se estiver aqui sexta feira às 16hrs. Como sempre.”
Como sempre...” Sussurrei, levantando-me depressa pela frenética adrenalina em minhas veias. “Estarei aqui.” Desci os degraus de dois em dois, e só na porta reconheci que havia esquecido de me despedir.
Só de pensar em sexta, algo em mim explodia e dançava e gritava de euforia.
As rotinas de dança me agradavam muito.