sábado, 17 de julho de 2010

Capítulo Vinte Um.

Rick tragou profundamente o cigarro recém aceso, deliciando-se com a parasita tentadora que corroia seus pulmões, fazendo-o delirar. Em seguida, soltou calmamente uma cadeia de fumaça, onde tudo parecia em câmera lenta – a fumaça, minha respiração, as sombras que o sol formava. Vendo-o daquele jeito me fez lembrar da minha pequenina época de fumante e, discretamente, senti saudade. Aquilo – aquela porcaria comprida e pequena, com tabaco e filtro –, depois de aceso, fazia milagres, desde te acalmar como dar novas idéias, libertar a criatividade, clarear os pensamentos.
Não me lembrava ao certo a razão concreta que me fizera parar de fumar.
“Você sabe manusear?” O som da voz de Rick despertou-me de minha busca na memória. Não sabia ao certo o que ele perguntara, mas tinha uma idéia.
“Ah... Você diz, manusear a saia?” Murmurei, um pouco até para mim mesma.
“Sim.” Um riso leve tremulou seus lábios antes de voltá-los ao cigarro.
Minhas mãos tocaram delicadamente o tecido que caia sobre minhas coxas, sentindo a textura. Agarrei-o de leve e balancei a minha volta, indo em direção ao espelho. Sutilmente, esquecendo da presença de qualquer outra pessoa no estúdio, imitei alguns passos de dança aprendidos com os anos de aula, examinando os movimentos que a saia precisava mostrar. O tecido deveria demarcar minha pele, todos os meus passos.
No reflexo do espelho, mesmo que borrado, registrava o olhar atento de Rick. Descansou o cigarro ainda pela metade no cinzeiro lotado de cinzas e veio em minha direção.
“Está quase certo. Assim...” De fato, um frio na barriga dilacerante interveio com a surpresa de Rick de repente atrás de mim. Suas mãos pegaram as minhas e menearam o tecido a minha volta do jeito correto – às vezes preso um pouco abaixo da cintura, depois sincronizado, os dois lados movendo-se juntos na mesma direção. E o velho Rick tenta me matar novamente, disse a mim mesma. Quando parou, seus dedos longos roçaram minha coxa, e um leve arrepio percorreu meu corpo. Respirei com dificuldade, sem perceber que estava prendendo a respiração.
Soltei-me de seu corpo, recolocando a posição aluna e professor na minha sanidade. Não que ela estivesse boa, nem correta. Fazia tempo que eu não a ouvia. Fica meio difícil quando seu professor de tango, alguns anos mais velho que você, é totalmente mais bonito do que qualquer outra pessoa que você já conheceu.
“Então, é desse jeito?” Desvencilhei-me de seu toque, encarando-o com certa distância, e refiz o movimento da saia que me ensinara.
“Aprende rápido.” E sorriu, provocante. “Mas só o faça se precisar. A saia é mais usada por marcar bem os passos, pois acompanha o ritmo do corpo. Ela só é usada como parte da coreografia quando o aspecto teatral entra em cena.”
“Entendido.” Disse, acenando com a cabeça.
“Hoje, não terá dança.” Começou a dizer assim que seus pés andaram pela sala até a mesinha com o cinzeiro. “Pelo menos não uma completa. Quero que você aprenda os passos de verdade, sem todo o instinto. Já vi que tem potencial. Com certeza, todos os anos de ballet clássico te deram a melhor base que poderia ter.” Quando o disse, estava apoiado na mesinha, tragando de leve e soltando um segundo depois, o cigarro quase no fim. Pegou o toco e amassou-o no cinzeiro.
“Onde estão seus sapatos de tango?” Verificou Rick, examinando meus pés no All Star branco – pelo menos um dia fora –, agora com o aspecto cinza manchado.
Eu tinha esquecido completamente de colocar os sapatos. Estranhei e, imediatamente, joguei-me contra o sofá, revirando a bolsa, em busca dos sapatos. Examinando a bolsa, de primeira não os achei. Também, havia tanta coisa ali. Tirei tudo de lá: chaves, cadernos, pastas, carteira, óculos, iPod, canetas, livros, calça da Sam que esquecera de devolver.
E nada de sapatos.
Eu não posso acreditar nisso!
“Droga...” Murmurei, continuando minha busca vaga pela bolsa, desejando que o par de sapatos aparecesse como mágica. Olhei para ele e seu rosto estava esperando, seus olhos indecifráveis. “Acho que os esqueci.” Senti uma careta se formar em meu próprio rosto.
“Tudo bem.” Rick disse e sorriu, estendendo a mão para mim. Encarei por alguns segundos sua mão e, de um jeito hesitante, a peguei. Um frenesi passou pelo meu corpo instintivamente. Seu aperto forte puxou-me para cima. Eu só não esperava que, uma vez de pé, ficaria tão perto dele.
“Você pode treinar os passos sem o salto, não é necessário.” Continuou ele. Nunca havia percebido o quanto Rick era alto. Meus olhos batiam um pouco abaixo de sua clavícula e um pouco acima de seu peito.
E, como se era de esperar, eu estava arfando com a visão.
Estava observando seu pomo de Adão subir e descer quando me dei conta o tempo que estava o olhando. Ouvi uma risada baixa e abafada vindo dele assim que senti minhas bochechas queimarem.
Fechei meus olhos um instante e respirei fundo, limpando minha mente, recobrando os sentidos. Rick deixava-me confusa. Era muita beleza para alguém. E ele continuava a atirar sorrisos maliciosos em minha direção, juntamente com seu olhar penetrante – e nunca antes tão verde. O cheiro doce de menta com um pouco de tabaco que ele exalava hipnotizava-me, alterando minha sanidade.
Respirei mais uma vez e lembrei que precisava fazer algo.
Ah, sim: Falar.
“Não? Isso é...” Por um segundo, me demorei no contorno de seu sorriso, mas para o bem da frase, desviei o olhar. “Isso é ótimo. Assim não perdemos um dia de ensaio.”
Rick riu gravemente, e foi quando percebi que ainda segurava minha mão. Ele puxou-a até o meio do salão, comigo atrás. A musculatura em suas costas estava marcada pela camiseta. Quando se virou para me encarar, estava longe o bastante para eu poder me concentrar na dança.
“Não vou te ensinar os passos como ensinaria para as outras pessoas, porque você sabe toda a base. O resto é simples.” Enquanto falava, andou lentamente até a mesa e apertou o play no aparelho de som, mas deslizou os dedos suavemente no volume, deixando-o baixo, como música de fundo. Suas mãos então roçaram minha cintura, a outra esticando meu braço. Hoje não havia a tensão tão presente nos outros ensaios. Hoje, eu realmente me sentia como uma aluna que nada sabia de dança.
Então começou a se mexer, levando-me com ele. Rick continuava a dar-me instruções sobre como os passos deveriam ser aplicados, cada movimento correspondente ao seguinte, sempre em sincronia. Ele estava certo – naquele dia, não dançamos, diretamente. Orientou-me em todas as falhas que ele havia percebido com o passar do tempo e de nossas danças, mas ele não as chamava de “falhas” e sim pequenos descuidos – até porque, o que eu conhecia de tango?
As horas se passaram e só percebi quando não havia mais sombras cruzando o estúdio. Olhei para o céu, tão escuro já naquele ponto. A primeira estrela despontou tentando ser meramente mais brilhante que o sol, agora partido. Ao olhá-la, desejei que aquelas tardes no estúdio nunca acabassem. Não sabia ao certo o que acarretaria esse meu pedido.
Encarei os olhos verdes, tão claros como a água do mar, e eles pareciam tristes.
“Você precisa ir, está tarde.” Disse-me, desviando o olhar, seguindo até a bancada para pegar um cigarro.
Observei sua figura através da pouca luz e algo em mim se mexeu. Algo, que até então eu não sabia que existia, ansiou para meus pés diminuírem o espaço que nos separava; para minhas mãos tocarem suas costas, sentir a textura fina de seus cabelos opacos, delinearem a linha de seu maxilar aparente. A cena formara-se em minha mente, e agora meus dedos tiravam o cigarro de seus lábios e o amassava no cinzeiro, enterrando-o nas cinzas velhas.
Foi ali que percebi o quanto eu queria beijá-lo.
Rick já tinha acabado de acender o cigarro, e agora me olhava, sua expressão fria e penetrante, com aquela áurea de fumaça o circundando.
Meus pés, ouvindo o instinto interior, avançaram para ele. De algum jeito, Rick soube o que meu desejo mais profundo ansiava e também avançou um passo até mim. E mais um passo, seguido de mais outro, e outro, até estar tão perto quanto quando me ajudou a levantar. Suas mãos depositaram o cigarro na boca, liberando meu cabelo do rabo de cavalo, deixando os fios caírem sobre meus ombros.
E em um clique, minha sanidade voltou.
Eu não podia me envolver desse jeito. Nunca mais.
Desprendi-me com certo esforço de seu olhar e tropecei até o sofá, pegando como um jato minha bolsa e saindo dali o mais rápido que eu podia. Quando estava nos últimos degraus, eu poderia jurar ter ouvido o eco de sua voz exclamar uma única palavra.
“Volte.”

domingo, 27 de junho de 2010

Capítulo Vinte.

(Desculpem tanta demora! Prometo que agora nas férias escrevo com mais frequência (: )


“Sam, você sabe como é uma saia de tango?”
Estávamos na casa de Sam tomando chá. Estava ajudando-a com os recortes para sua mais nova coleção de inverno. Já tínhamos recortado 63 looks.
“Não faço a mínima idéia.” Parou, pensou um pouco, um dedo no queixo. Levantou-se e saiu correndo pelo corredor até seu quarto, da onde voltou igualmente pulando com sua Pasta de Inspirações.
“Deixe-me ver, hm...” Começou a folhear tão rápido que eu nunca conseguiria discernir uma cor se quer. “Acha que poderia ser assim?” E levantou a pasta onde mostrava um photoshoot típico da Vogue italiana ou francesa. Sobre dança. A modelo estava parada em um estúdio de tijolos antigos e rústicos, espelhos brilhantes encostados nas paredes e barras improvisadas. A saia era uma comum, transpassada de seda, cintura alta de um azul petróleo magnífico.
“É linda.” Disse, depois de respirar. “Mas parece cara. Caríssima.”
“Ah, mas é porque é um editorial da Vogue. Pegaram peças de estilistas famosos que estavam de acordo com as roupas para dançar. Olha.” E virou a página, mostrando outras saias e collants lindíssimos, além de saltos que imitavam sapatilha de ponta.
“É, tem razão.” Olhei a hora: três e meia. E ainda tinha que cruzar a ponte para chegar ao estúdio. “Sam, preciso ir.”
“Vai ver o Rick?” Seus olhos brilharam.
“Vou.”
“Eu vou com você até lá!” Saltou do sofá com tanta rapidez que ninguém poderia ter conseguido acompanhar. Em seguida, parou bruscamente. Seus olhos tornaram-se turvos e levou as mãos à cabeça. Eu nunca havia visto Sam desse jeito.
“Sam, você está bem?” Levantei-me e olhei-a nos olhos.
“Sim.” Não me convenceu. “Só foi uma tontura.”
“Tonturas são rápidas.”
“Jane, pelo amor de Deus, é apenas uma tontura.” E sentou-se. Parecia melhor agora.
“Desculpe. Nunca tinha te visto tão estranha.”
Sam me olhou nos olhos e toda sua felicidade tinha desaparecido. Havia algo ali, eu sabia. Traços de algo estranho e indefinido. Aquilo me deixava preocupada.
“Eu acho... Acho melhor você ficar.” Murmurei.
“Eu...” Disse Sam, fechando os olhos e pegando uma grande golfada de ar. “Eu também acho. Se importa de ir sozinha?” Seus olhos azuis pareciam preocupados.
“Claro que não, Sammy.” E sorri, encorajando-a. Era a única coisa que eu podia fazer naquela hora. Dei um beijo em sua testa e ela sorriu fraca.
No caminho para o elevador, liguei para Nate. Ele disse que iria vê-la ainda hoje, tranqüilizando-me.
O problema de conhecer muito bem uma pessoa é saber quando algo está errado, mas não saber o quê.

Já nas ruas, o ar estava abafado. Suor pregou em minhas roupas e nas de qualquer outra pessoa em minha volta. O sol ainda estava lá, impetuoso como sempre. Tão claro que doía olhar até mesmo de óculos escuros.
Ao longo do tempo fui percebendo o que a primavera proporcionava nas pessoas. Dá vontade de sorrir e sair por ai cantando músicas alegres. De repente suar não é nada demais e roupas mais curtas não são um problema. Você larga as técnicas para deixar o cabelo melhor e assume os cachos, o ondulado, o liso rebelde. Sorvete nunca é demais. A praia é desejada. Os amores começam e terminam no verão, porque ninguém quer ficar perto demais, fisicamente e psicologicamente, de outra pessoa. É um legado.
Lembrei – como sempre – dos meus verões com Sam e Matt. Nós corríamos no porto e passávamos o dia inteiro no Central Park. Fazíamos sorvete caseiro e nunca dava certo. Já salvamos um pássaro que tinha quebrado a asa. Fazia tranças no cabelo inteiro de Sam. Víamos o pôr-do-sol todos os dias e nunca nos cansávamos.
E Matt não parava de rogar para que aqueles momentos nunca acabassem. Eu nunca parei. Sam não cogitava a idéia de acabar.
Porque aquilo era paz. Todos procuram a sua própria, mas eu sempre soube da minha. Estender as toalhas, colocar os pés na areia, sentar e ver o sol despedir-se, deixando o céu mais vermelho do que em qualquer outra estação. Ouvir as gaivotas e tirar fotos. Estar com quem eu amava... E que pensava que me amasse.
Em meio às lembranças, já estava na porta do estúdio. O choque da surpresa tirou toda a melancolia de meus traços e o frio na barriga consumiu-me. Girei a maçaneta e comecei a subir as escadas, inspirando e expirando, inspirando e expirando...
Era incrível como, uma vez fechada a porta, o mundo lá fora se aquietava. Tudo que parecia importar e existir eram meus pés, minha respiração, a música audível de longe, as essências, Rick. Era como um mundo onde eu podia fugir para.
As janelas, pela primeira vez, estavam abertas. Não todas, apenas duas. Um vento suave vinha delas.
Rick estava sentado embaixo de uma delas fumando. Havia um copo aos seus pés com um resto do que parecia ser conhaque. Tragou e virou-se para minha direção, rindo enquanto soltava a fumaça. Deslumbrante.
“Você se atrasou.” Tragou novamente.
“Desculpe, minha amiga passou mal.” Desviei seu olhar que estava um verde mais claro. No sofá antigo havia um pacote branco.
“Isso...” Levantou-se e veio em minha direção, tragando e soltando. Seus passos descalços na madeira tinham um barulho abafado reconfortante. Segurou o cigarro entre os dedos e pegou o pacote, entregando-me. “Isso é para você.”
Olhei-o com olhos interrogativos.
“Apenas abra.” Disse, soltando a fumaça na minha cara.
Desembrulhei o papel branco e, dentro do mesmo, havia uma saia. Ela possuía um corte rodado, dando ao tecido vermelho uma sensualidade aparente. Parecia ser exatamente o meu número.
“É linda.” Eu estava sem palavras. Como ele conseguira acertar tão bem?
“É um presente.” Disse já de costas enquanto voltava ao cinzeiro.
“Obrigada, então.” Sentia minhas bochechas quentes. Eu sempre agia assim ao ganhar algo que eu realmente gostara.
“De nada.” A voz de Rick saiu travada, pois segurava outro cigarro em seus lábios e, com uma das mãos, bloqueava a brisa, enquanto a outra tentava acender. Quando conseguiu e tragou, sorriu, e eu podia afirmar que seus olhos nunca estiveram tão claros.
Coloquei a saia por cima da legging, como de costume nas aulas de dança. A saia servira como uma luva.
Rick apenas observava quieto. Quando rodei, pedindo aprovação, sorriu de leve e levou seus olhos aos meus, prendendo-me ali. A tensão do tango correu em meu sangue.
“Agora, vamos começar.”

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Capítulo Dezenove.

Eu olhava para o relógio incessantemente.
Agora eram 15:57.
Tentava me acalmar. Prestar atenção na extensa linha da calçada, na fachada dos prédios a minha volta, na idade dos bancos e dos riscos no asfalto. Pensar educadamente – ou não – na forma que tal pessoa anda, ou no jeito que seus olhos vagam pelo concreto, ou das roupas daquele sujeito maníaco. Fixar a mente em um ponto qualquer, um pássaro disperso, uma seqüência de buzinas ritmadas, um arrastar de carros apressados demais para meu gosto.
Porque agora eram 16hrs em ponto, e fazia 2 semanas que eu não via Rick. Que não sentia o cheiro denso de menta e álcool daquele lugar fechado, escondido do universo e dos olhos mortais. Duas semanas longe do que eu chamava de paz.
Eu podia muito bem encarar a porta a minha frente e sorrir. Era uma quarta feira quente. O vento frio que perturbara a tudo e todos nos dias insondáveis haviam desaparecido, mas a umidade penetrava em nossos poros e grudava em nossas peles agora.
A velha e danificada porta parecia estar alegre em me ver, assim como eu estava.
Girei a maçaneta gelada e a porta estremeceu, chorou e rangeu para ser aberta. Fechei-a atrás de mim, despedindo-me por algumas horas de um mundo que eu, sem duvida alguma, gostaria de deixar para trás.
Respirei fundo estando dentro dali. A menta. O tabaco. O álcool. Esses doentis aromas preencheram-me por inteira. Parecia que apenas aquilo me faria sobreviver.
Subi as escadas, e usualmente, prendi meu longo cabelo em um nó gigante no topo da cabeça.
Não havia som, tirando meus passos e minha respiração. Ou eu não ouvia por causa de meu coração. Tentei me concentrar o máximo que pude, e ouvi os passos na madeira lisa. Senti, por fim, a longa fileira de dentes aparecendo em meu sorriso.
Antes que a escada chegasse ao fim, os passos pararam. Perguntei-me se Rick teria ouvido minha respiração, ou meus passos nos degraus, ou a porta bater.
Quando cheguei ao fim dos degraus, o vislumbrei. Meu coração parou de bater no mesmo segundo.
Ele estava de costas para mim, mexendo em algo. Logo, ouvi o tilintar do metal do isqueiro e a fumaça saindo depois da primeira tragada. Pegou uma garrafa – cujo rótulo aparentava ser mais velho que o próprio Rick, baseando-se a impossibilidade de lê-lo – e derramou um pouco do vinho barato em um copo pequeno.
Ele não sabia que eu estava ali.
Então aproveitei o gostinho momentâneo de observá-lo.
As mangas da camiseta cinza escura estavam arriadas nos ombros, e com sua coluna arqueada para frente, os músculos nas costas sobressaiam. A luz que vinha da janela deixava seus cabelos em um tom de castanho mais claro do que qualquer outro. A fumaça, que saia de sua boca, circulava e serpenteava no ar até sumir, contrastando com a escuridão dos cantos da sala.
Eu não via jeito de avisá-lo que estava ali.
De repente, deu sua última tragada e amassou o resto das cinzas no cinzeiro. Passou as mãos no cabelo e chacoalhou a cabeça. Apertou um botão no som e fez movimentos circulares com os ombros.
E começou a dançar para ele mesmo.
Não se virava em nenhum momento. Na única vez que virou, estava de olhos fechados. Não sentiu minha presença, não ouviu meus passos muito menos minha respiração.
Tive uma idéia.
Muito calmamente, coloquei minha bolsa no chão. No metrô já havia colocado os sapatos – a empolgação não parava de soltar adrenalina. Tirei o casaco prendendo a respiração, torcendo para ele não ouvir nada.
Seus pés desfilavam. Seu corpo se movia rapidamente, na mesma batida que a música. Era uma valsa remixada. Uma música comum, em tempo de valsa, só que totalmente sem aparentar sua classe. E valsa não se dança sozinho.
Começou a dançar para o meio do salão. Quando girou, seus olhos continuavam fechados, bem apertados. As esmeraldas ainda não estavam à mostra.
Caminhei suavemente até perto dele.
E por um momento pensei que, talvez, mas só talvez, ele soubesse que eu estava ali, porque suas mãos imitaram a posição com uma parceria. Segurando sua mão e sua cintura.
Parecia até que sabia de meu plano.
Porque bastou uma volta para mais perto de onde estava, e eu me localizava em seus braços. Uma força inexistente em mim impediu-me de qualquer vergonha, e com o embalar da música, eu estava em sintonia.
Abri meus olhos, tão apertados quanto os seus, e vi.
Rick não abrira os olhos.
Mas agora estava sorrindo maliciosamente.
Ele sabia? Perguntei-me. Ele simplesmente sabia?
Puxou-me para perto, e estávamos dançando, depois de tanto tempo – para mim. Mas naquela hora, enquanto meus ouvidos estavam submergidos em melodia, harmonia e hiatos a felicidade, eu queria saber dele. Se ele gostava daquilo tanto quanto eu. Se ele se sentia em paz tanto quanto eu sempre me sentia. Se ele estava sozinho nesse mundo. Se ele sempre fora daqui. Se dançar, para ele, era apenas como trabalho. Até mesmo se cigarros, vinhos baratos e balas de menta eram seu vício.
Mesmo assim, algo em mim dizia que não era certo. Que os Se poderiam acabar com toda a magia que envolvia o estúdio. Toda a fascinação, necessidade e perfeição daquele lugar. Todo o mistério do estilo de música mais envolvente e apaixonado.
Deixei os Se de lado por um instante.
A música estava acabando. Nossos passos pareciam os mesmos – os passos básicos de valsa. Os últimos arranjos seriam dados, e estava acabada.
Era o que eu pensava.
A valsa dera uma pausa, a necessária para mudar de compasso, ritmo e estilo musical. Aquilo não era mais uma valsa moderna remixada. Era um tango moderno.
Nesse momento, eu olhava para Rick, assustada. No segundo exato que a “nova” música começou, as esmeraldas apareceram reluzentes e cheias de segredos. Uma onda de antecipação me tomou por completo depois do susto.
E voltamos a dançar que nem antigamente.
Sem palavras. Só olhares, toques e respirações.
Seus dedos tingiram linhas intermináveis em minhas costas enquanto girava-me. Nossos olhos não se desgrudavam um segundo se quer. Aquelas adoradas esmeraldas pareciam sufocar-me.
Em um errático solo de violinos e violoncelos, trouxe-me para mais perto, projetando seus lábios para tão perto de minha orelha esquerda quanto podia. Expirou profundamente. Ainda bem que estava presa por seus braços – eu teria despencado com as pernas bambas.
Uma frase de Sam ecoou em minha mente.
Você tem o Rick, não é mesmo?
Eu não sabia ao certo a resposta. Quando dançou para si mesmo (ok, encarando os fatos, talvez ele não estivesse dançando realmente para sim mesmo.) parecia tão... Suficiente. Tão “dele” mesmo. Não parecia se importar com qualquer outra coisa, com qualquer outra pessoa.
Até perguntei-me se ele era capaz de me ver com outros olhos.
Pelo amor de deus, não.
Absorta em pensamentos, deixando para meu corpo e mente cuidarem dos passos de tango, não percebi o término da música tão próximo.
Durou o tempo para nossos olhos se encontrarem novamente e a frenesi parar.
Rick sorriu de orelha a orelha.
Tipo, ok, e como eu fico respirando casualmente?
“Você reapareceu.” Riu um pouquinho, desviando o olhar, encarando o entardecer alaranjado. “Pensei que nunca mais a veria.”
“Eu estava com alguns problemas.” Rezei para que não tivesse percebido o quanto minha voz e pernas tremiam.
“Problemas duradouros.” Não aparentava uma pergunta.
“Talvez eternos.” Suspirei com a lembrança de minha quase depressão. “Fixos.”
“Irreparáveis?” Sua sobrancelha arqueou.
“Talvez.”
“Irreversíveis?”
“...Eu tenho tentado fugir do assunto a dias.” Isso era um tipo de teste?
Olhou-me com desdém.
“Sim, irreversíveis!” bufei, dirigindo-me ao sofá. Dar as costas para ele seria um ótimo jeito de respirar agora.
Peguei minha bolsa e o casaco do chão e sentei-me no acolchoado. Tirei o elástico que prendia o cabelo e suguei o máximo de ar que meus pulmões agüentavam. No entanto, Rick fora para o outro lado, para fazer o de sempre – era tão confortável poder dizer isso, depois de uma rotina tão arriscada.
Cigarro na boca, isqueiro na mão, tragada, fumaça.
Fazia tanto tempo que eu não colocava um cigarro na boca.
Desloquei propositalmente meus olhos dele, e pus-me a difícil tarefa de achar meus All Stars e meu iPod na bolsa.
“Você precisa de uma saia.” Rick disse do nada.
“O quê?” eu havia ouvido. Só não havia entendido.
Deu uma última tragada, revirando os olhos e jogou o toco de cigarro no cinzeiro.
“É tango. Você precisa ter algo para mover além de seu olhar.” Olhou-me com olhos estranhos. Uma emoção nova. Outra para eu desvendar.
“Ah.” Não conseguia visualizar a saia adequada. “Mas não tenho a mínima idéia de como ela precisa ser.”
“Eu cuido disso.” Disse ele, já pegando outro cigarro e sorrindo maravilhosamente. “Se estiver aqui sexta feira às 16hrs. Como sempre.”
Como sempre...” Sussurrei, levantando-me depressa pela frenética adrenalina em minhas veias. “Estarei aqui.” Desci os degraus de dois em dois, e só na porta reconheci que havia esquecido de me despedir.
Só de pensar em sexta, algo em mim explodia e dançava e gritava de euforia.
As rotinas de dança me agradavam muito.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Capítulo Dezoito.

(Devidas desculpas à vocês, caras leitoras. Tenho passado por momentos não tão agradáveis, mas já tinha esse capítulo guardado há um tempo hihi (:
Esse cap contêm música, meu povo. E é a Dreamscape, do 009 Sound System. Apartir do momento em que aparece no texto "A música trocou", é onde a Dreamscape entra *-*
009 Sound System - Dreamscape.mp3)



A boate era pura adrenalina.
As cores néons entrelaçavam-se saindo do teto e recaindo no mar de corpos dançando na pista de dança. O DJ, por incrível que parecesse, era realmente bom, deixando todos um tanto loucos – é claro que havia mais do que a música mexendo com a mente deles.
Estava tocando um rock remixado e algumas músicas eletrônicas atuais. Nunca tinha visto um universo tão cheio ser tão reconfortante.
Sam só atraia olhares. Masculinos e femininos. Os olhares de desejo e inveja eram palpáveis, chegando a serem engraçados. Fiquei imaginando por uma fração de segundo o que pensavam de mim ao lado dela.
Puxou-me para o bar e eu sabia o que ia pedir. Todas as amigas desconhecidas de Sam sentaram-se nos puffs de cores chamativas que, mesmo afastados da pista de dança, ainda faziam com que as batidas graves ressonassem na alma.
“O de sempre!” Gritou. Mal virou a cabeça para meu lado e voltou a gritar. “Aliás, dois!” e sorriu.
Enquanto esperávamos as bebidas, observei aquela atmosfera barulhenta e hipnótica. Era tão claustrofóbica. Mas parecia tão necessário continuar ali, tentar sempre sugar o máximo de oxigênio possível e continuar...
Não se via alguém como eu. Triste. Deprimido. Encolhido nos cantos.
Ali dava para ser qualquer um e ninguém ia se importar.
Vi de longe o garçom chegando. Sorriu para mim, agradando a clientela, e parou na minha frente, olhando a jovem de cabelos ruivos de costas para ele. Dei um pigarro de leve até Sam virar-se. Na bandeja, duas taças vermelhas repousavam.
“Com licença.” Disse bem perto de nossos ouvidos para ouvirmos e entregou os copos. Tirou do bolso do avental um papel e entregou para Sam. “Eles desejam que vocês tenham uma ótima noite.” Finalizou, sinalizando com a cabeça para uma dupla de rapazes espantosamente lindos com taças iguais as nossas e foi embora. Os dois piscaram, exibindo um enorme sorriso e brindaram, levantando a bebida avermelhada ao ar.
Sam arfou um pouco e caímos em risadinhas.
“Será que tem álcool?” disse, e molhou seus lábios na beirada do copo. Agora eu sabia o que pensavam de mim em meu estado deprimente. “Não parece ter...” Virou o copo no mesmo minuto que minha boca abriu um “O”. Tomei um longo gole.
Sentamos nos bancos do bar para analisar-mos o papel. Tinha dois números de telefone com dois nomes: Ralph e Dan.
“Será que deveríamos ligar?” Disse Sam.
“Você tem namorado!”
“Mas você não tem.” Aqueles olhos infantis estavam começando a ficar vermelhos.
“Sam! Pelo amor de Deus!” Estava perplexa. Justamente eu iria ligar para acompanhantes masculinos? Minha depressão não estava para tanto.
E a bebida, com toda certeza, tinha um pouco de álcool.
“Tá certo. Você tem o Rick, não é mesmo?”
“Na verdade não.”
Olhou-me com desdém, daquele tipo que diz “fala outra!”. Deixou o copo no balcão e olhou para a pista de dança, imitando a mim. Um minuto e tudo que ouvíamos era a barulheira do salão.
“Vamos dançar?”
Aquela frase soou mais perfeita do que qualquer outra.
Quando olhei para Sammy novamente, pude sentir que eu não precisava de ninguém realmente. Eu queria dançar, mas não como eu dançava com Rick, não. Sem a tensão, sem o sentimentalismo, sem o significado. Eu queria dançar por dançar. Porque para mim, qualquer coisa que fazia-me mexer meu corpo era sinônimo de felicidade.
Ou bem perto disso, eu admito.
Não esperou nem a resposta. Já pegara minha mão e lançara-se para o labirinto de pessoas balançantes, deixando para trás sua bebida favorita em dose dupla. Achando a brecha necessária, um ponto da pista era adequado para dançarmos. Quando olhei para trás, todas as amigas anônimas estavam ali também.
A música trocou. Eu sabia o que fazer.
Fechei meus olhos e esperei.
Esperei ela chutar as paredes de meus bloqueios e invadir-me.
Tudo era como câmera lenta. Nada mais se movia. A música era tão grave e tão autêntica como nenhuma outra. Os montes de pessoas grudadas à minha volta não existiam.
Meu corpo relaxou completamente, e os fios de meu cabelo pareciam quererem se soltar. Em um segundo o compasso ritmou com as batidas erráticas de meu coração.

You can do anything you want to.
You can do anything.

Parecia que só existiam as luzes coloridas dançando sobre meus cabelos, cujo eles voavam para todos os lados no tempo da música. As graves vibrações batiam em meu peito e desciam pela coluna vertebral. Nenhum corpo desconhecido parecia me tocar, ao mesmo tempo em que não importei se meu cabelo, devidamente longo, batesse em alguém.
Está acabando, disse a mim mesma, e abri os olhos, acabando com o êxtase.
As luzes martelaram um par de olhos – saindo da ilusão, eu não podia confirmar – mas a luz, mesmo possivelmente sendo verde, não poderia deixar aquele olhar tão verde quanto era.
Mas foi tudo em uma fração de segundo.
Rick?
E sorri comigo mesma.
“Talvez a dança me persiga em forma de um Rick espião.” Disse aos meus botões, enquanto tropeçava em jovens sorridentes de uma madrugada nova-iorquina depois de uma noitada com amigos ocultos.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Capítulo Dezessete.

Nas ruas da madrugada nova iorquina, tudo era festa.
Talvez, se algum pedestre passasse por mim sobriamente durante aqueles minutos, diria que era a única sem estar chapada, sorrindo como uma louca.
Minhas mãos enterradas nos bolsos do casaco e a face fechada não eram convidativas.
Resolvi – percebam, eu deduzi! – fazer algo. Ir a algum lugar. Sorrir um pouco. Prometi a mim mesma que isso não envolveria drogas ilícitas e porcentagens altas de álcool. Prometi, principalmente, que me faria feliz sozinha. Auto-suficiente.
E essa dedução levou-me a outro pensamento.
Ao qual eu sabia como ficar feliz.
Dançando.
Balancei a cabeça, afastei o pensamento. Já não prestava atenção nos meus pés desde que saíra do apartamento. Daqui a pouco trombava com um dos sorridentes que passavam por mim.
Parei em uma esquina, procurei a placa. Meio apagada com o tempo, lembrou-me estar a poucas ruas de uma boate aonde eu e Sam íamos antes de cair na depressão. Sempre fora minha salvação. Dançar, não me importando em estar dentro das regras. Sorrir freneticamente com o excesso de glicose que as bebidas com frutas exóticas me proporcionariam.
Dirigi-me até ali, tentando apagar a desilusão de que o clube estivesse fechado por estar no meio da semana. Mas afinal, Nova York não tinha regras. A vida ali, mesmo sendo complicada, podia ser divertidíssima se você não ligasse para, meramente, nada.
Apenas a sorrir e entregar-se a felicidade.
Oh Deus...
Naquele ponto, já estava bem mais próxima do clube. Havia várias pessoas ali perto, indo na mesma direção que eu tomava. Passados uns segundos, ouvia o burburinhos das filas de entrada. Depois veio a batida grave que o DJ coadjuvante reproduzia.
A boate noturna Nitrous era abordada por todas as idades, todas as opções sexuais e de estilo. Lembro que Sra. Goldenbrown ficara assustada na primeira vez que levara-nos à boate. Seus anos como Love and Peace foram apagados com o tempo.
“Isso mais parece uma miscigenação, querida!”
É Nova York, mamãe.”
Já na fila, lembrei do quanto era insuportável esperá-la. Os corpos debatendo-se na desenfreada excitação para entrar na melhor boate de Manhattan. Isso durou até Sam resolver nos tornar VIPs do local.
Em um impulso irracional, coloquei as mãos nos bolsos. É claro que meu cartão não estava lá. Não pertencia àquele local há três anos!
Comecei a fazer um breve resumo do que perdera nesses anos de espera vaga. Desperdício à minha jovem vida. Onde eu poderia ter rido, me divertido, feito tudo que garotas da minha idade naturalmente fazem... Não. Resolvi sofrer por alguém que nunca voltaria.
E foi quando um peso se apoderou em meus ombros.
Mas não era o tipo de peso que estou acostumada – o peso sentimental. Era um peso humano, físico.
“Jane! Jannie! J!”
O mesmo peso virou-me para trás e vislumbrei-a. Minha adorável amiga hippie – ooops! – com o mais longo sorriso. Os olhos, naturalmente brilhantes, adornados com uma maquiagem prata. Os cabelos mais vermelhos, com tirinhas de couro espalhadas naquela imensidão.
“Sam, o que diabos está fazendo aqui? Temos aula amanhã.”
“Eu é que pergunto senhorita.” E apertou minhas bochechas. Qual é a de apertar minhas bochechas? Ela repete o mesmo gesto desde que nos conhecemos.
Não respondi. Na verdade, não tinha explicação. Eu só não achava certo ir à escola, de algum modo. Estava nula demais. Vazia demais.
Sam percebeu meu olhar. No meio de tanta euforia e decadência em termos iluminação, conseguiu decifrá-lo. O olhar que ela com certeza vira por três anos inteiros.
“J...”
Olhei-a e, com todas as minhas habilidades, formei um conveniente sorriso. Eu só esperava ser convincente o bastante.
“Não é o fim do mundo, Sam. Apenas me precipitei.”
Seus olhos transparentes tornaram-se tão magoados que odiei ter até mesmo saído de casa. Depois de um momento, olhou para mim novamente, e parecia decidida.
“Não vou desistir. Isso não é para sempre, é?”
Tão positiva. Aquilo enchia-me de esperança.
“É claro que não é.” E sorri verdadeiramente, sendo acompanhada pela fachada luminosa do sorriso de minha melhor amiga.
Puxou-me pelo casaco, ao mesmo tempo em que desprendia meus cabelos e os desarrumava. Foi até o segurança, não respeitando a fila, e mostrara seu cartão VIP dourado. Nunca vira uma extensão tão longa de dentes brancos serem mostrados por um segurança de boate. Destrancou a porta e deixou-nos entrar, levando a fila à cólera.
“A propósito...” começou Sam. “Hoje é Sexta à noite.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Capítulo Dezesseis.

O teto de meu quarto, geralmente branco, não estava da mesma cor. Estava escuro. Cinza. Com as sombras das barras da janela e com o leve movimento da cortina.
Eu encarava este mesmo teto à, pelo menos, 2 horas.
Virei a cabeça para a direita, encarando a luminosidade vermelha do relógio. Quatro e meia da madrugada e minha consciência insistia em produzir pensamentos.
Pulei da cama. Ficar deitada naquele espaço amplo e frio me dava a maior sensação de vazio que já tive. Andando lentamente até a varanda, os pés descalços e silenciosos congelavam pouco a pouco.
O vento acabou comigo. Mordeu a pele de minhas bochechas, deixou-me com lágrima nos olhos, a dor de garganta parecia querer aparecer. Apertei os braços contra mim mesma, cruzando-os por cima do robe, e cheguei a sacada, apoiando-me no parapeito.
Vislumbrei uma Nova York sonolenta. Ainda havia carros correndo pelas ruas, semáforos que nunca paravam de funcionar. Pessoas, grupos de amigos, casais saindo de apartamentos em conjunto, rindo, andando trôpegos. Bêbados, mas felizes. Com grandes gargalhadas explodindo ao longo da rua.
Então eu pensei: será que se embebedar e fumar como uma chaminé arrancaria de mim sorrisos? Eu iria esquecer a solidão?
Deitei minha cabeça nos braços cruzados, fechando os olhos lentamente, substituindo as lágrimas de frio por quentes, verdadeiras, não causadas por nada a não ser emoção.
Quando meus olhos voltaram ao foque, jurei ter visto algo. Do outro lado da rua, olhando para minha sacada. Mais especificamente, para mim. Tudo bem, é normal em Nova York as pessoas pararem do nada e te encararem. Principalmente às quatro horas da manhã, onde quem ainda está na rua está bêbado ou drogado.
A pessoa estava sóbria, sim. Perfeitamente conhecida, mas o foque de meus olhos não eram o bastante para distinguir.
Alta, descabelados fios claros, olhos brilhantes, e um meio sorriso no meio de minha atordoada e sonolenta visão o fizeram virar-se de costa e voltar ao seu destino.
Meu cérebro sabia quem era.
E então eu estava vendo alucinações. Ou era uma sonâmbula. Ou eu estava sonhando ainda.
De repente, ouço passos contidos no corredor da sala. O molho de chaves pendia enquanto andava, estalando. Em seguida, a porta abriu e fechou, não tão bruscamente quanto eu estava acostumada a fazer.
Era minha mãe, com toda certeza. Mas eu nunca saberia o que ela fazia saindo às quatro da manhã de casa e nunca voltar. Talvez eu não quisesse descobrir.
Tivesse medo.
Bufei, e voltei minha atenção aos sorridentes grupos de amigos em bares.
É, talvez o álcool faça-me esquecer que a vida é do jeito que ela é.
Decidindo de última hora que não iria à escola de novo, vesti-me com o casaco e meu cachecol, evitando qualquer pensamento sobre o que eu estava fazendo.
Ao passar pelos mesmos passos de minha mãe, mergulhando pelas paredes desgastadas de minha casa – eu a considerava apenas minha –, com as mãos rapidamente ajeitando a chave na fechadura, encontro-me encarando a figura estranha, refletida no espelho cheio de falhas que devia estar ali à mais tempo do que eu estava.
A pálida face tinha leves olheiras em baixo do olhar cansado, injetado de sangue. Haviam marcas brilhantes nas bochechas, linhas que não seguiam padrões. Lágrimas.
Mas elas secam tão rápido...
Esfreguei as costas das mãos em minha face e destranquei a porta saindo, enquanto aquela grande maçã chamada Manhattan se divertia e ria de quem dormia.
De quem desistia.