segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Capítulo Nove.

A escola já havia acabado quando retornei a andar por aí. Sam tinha ido ao outro lado da cidade ver Nate. Ah, Nate era o namorado de Sam. Ela sempre teve um tombo pelo sorriso branco dele, e ele sempre teve uma tirolesa pelos olhos dela. Sempre assim; perfeitos um para o outro.
O vento cortante estava fraco àquela hora. O zumbido do trânsito nunca deixava meus ouvidos. Estava bem em frente da New York Public Library. Entrei, sem ao certo saber por que estava ali. Talvez eu pudesse procurar sobre Tango. É, ia ser uma boa escapar da minha leitura repetida e incansável dos romances.
Adentrei o local e, de primeira, avistei Lee. Lee mora em Chinatown, mas não sai da Public Library. Quando me viu, seu cabelo curto, naturalmente preto, liso e fino, chacoalhou-se inteiro. O óculos branco quase despencou de seus olhos quando pulou.
“Jane! Há quanto tempo você não vem me visitar.” Disse ela, brincando. Ela fazia estágio ali no verão, enquanto eu, geralmente, fazia em estúdios de dança profissional. Mas isso não ocorria há uns dois anos.
“Ah, não tive tanto tempo para os romances.” Abracei-a. Fazia tempo que não falava com ela. Na correria, deslumbrava sua presença em algum canto, mas nunca tinha certeza se era ela. Eu não tinha mais tempo para as tardes inteiras procurando livros novos, como antes fazíamos juntas. No máximo vinha para pegar livros para a escola. No máximo.
“Então, quer alguma história nova? Algumas pessoas doaram coleções antigas de romance clássico, bem estilo Austen. Vai querer?”
“Acho que hoje não. Onde é a coluna de dança?”
Um leve choque atravessou seu rosto. “É a sétima do fundo... mas, dança? Por quê?”
“É, dança.” Um motivo, precisava arranjar um motivo, e rápido. Pensa, pensa, pensa, pensa! “Estou fazendo um trabalho sobre isso.”
“Ah, claro. Vou ficar aqui. Não vá embora sem antes falar comigo, ok?”
“Ok.” E fui a minha busca.
A fileira estava vazia, ninguém aparentava lhe dar atenção. Os livros, com uma espessa camada de poeira nos lugares mais fundos, mostravam que eu podia ser a única a visitar aqueles livros em meses.
Os livros, em geral, estavam desorganizados. Peguei um mediano, porém de estatura larga e capa avermelhada, mas com pontos de bolor. As letras antigas, escuras com o tempo, refletiam na pouca luz um “Manual do Movimento – A Dança Compacta”.
Dirigi-me até uma mesa com luminária e acendi. Abri o livro e descobri as páginas já amareladas. O sumário estava um pouco apagado, mas consegui ler a palavra “tango” e sua página correspondente.
No alto do capítulo correspondente, estava um prólogo:

“O Tango é a dança da carne, do desejo, dos corpos entrelaçados. É um diálogo novo, a sedução feita movimento, o ir e vir, encontro de dois mundos. É um baile exibicionista, esteticamente belo, e ronda sem temores o universo do lúdico. O casal de baile roça seus pés entre sensuais carícias enquanto o atônito espectador ocasional, eterno voyeur, se fascina com o ardor do tácito romance entre os dançarinos...”.

Parei por aí, um pouco chocada. Nunca vira uma descrição tão construtiva, tão voraz, tão explícita, nem sobre tango, nem sobre qualquer outra coisa. Mas aquelas palavras contradiziam com o que estava por vir. Toda dança é uma arte – ela precisa ser sentida, tocar você, mexer com você de tal forma que você não tenha controle. O necessário para essa especialidade de dança era paixão.
Oh deus, isso ia ser mais complicado do que eu imaginava.
As palavras, como eco, soavam em meus ouvidos repetidamente enquanto saía da Public Library e ouvia distantemente Lee chamar meu nome.
Depois de ler aquele prólogo, a imagem se formara em minha cabeça. A garota linda, de cabelos loiros, presos em um coque, olhando furtivamente para o rapaz a sua frente. Ele era moreno, com um toque latino, e seus olhos não perdiam um segundo os dela. Como um flash, os dois se juntam, e começam a eterna dança. As mãos, firmes na cintura dela. As mãos flácidas no peito dele. A inclinação, e os lábios dele tocam sua clavícula...
Sacudi a cabeça, tentando afastar qualquer coisa impossível da minha mente. Eu queria fazer as aulas. Mais do que tudo. Eu não ia ter um romance com ele, só iria sentir a música, como sempre.
Nem que eu tivesse que jurar:
Eu nunca iria me apaixonar por ele.
Eu já estava pensando demais no assunto. Já era noite a essa hora, e resolvi estender a caminhada até a Times Square. Aquela avenida brilhava, encantava, cintilava. Todas as cores e luzes que não existiam em Manhattan se concentravam apenas ali.
Andando por aquelas luzes ofuscantes e coloridas, os cartazes de cinema e teatro gritavam para sua visão, as propagandas de empresas chamavam sua atenção, o ir e vir das pessoas não parava nunca.
Em uma das esquinas, uma multidão de gente se aproximava de um círculo já cheio de espectadores. Devia ser um mágico farsante, ou talvez uma mulher semi-nua pronta para tirar alguma parte de sua roupa minúscula.
Enquanto passava, tentando desviar educadamente das pessoas em meu caminho, ouvi a música. Os doces violinos provocativos. Os passos no chão de acordo com o compasso. O violento violoncelo relutando por seu lugar no som agudo. Vi de relance uma perna feminina com uma meia arrastão, uma fatia do vestido vermelho colado aberto na coxa e os sapatos pretos de camurça, iguais aos meus.
Tentei achar espaço entre as milhares de pessoas. Encontrei um minúsculo, onde apenas meu rosto cabia, entre um menininho ruivo baixinho e seus pais.
Era perfeito. Era o casal da minha imaginação. Eles eram estupendos. As carícias relatadas no livro estavam ali em cada toque cuidadoso. Os olhos cheios de maquiagem da mulher desviavam rapidamente de seu companheiro para provocar a platéia – os eternos voyeurs. Seus rostos traziam a admiração imaginada, a surpresa por ver tal coisa perfeita no meio da Times Square. Eles, com toda certeza, estavam se amando no meio daquela rua suja aos olhares suspeitos de todos.
Um chapéu no chão com algumas moedas representava a pouca gorjeta. Peguei, rapidamente, tentando não tirar os olhos, uma moeda jogada em minha bolsa. Eles mereciam algo. Moeda, não tinha, mas achei uma nota de cinco dólares. Joguei-a e saí dali – sabia que a música estava pronta para acabar.
Aquilo – aquela cena, recém presenciada – me despertara a vontade de dançar. Eles não precisam necessariamente se amar. Eles precisavam amar a música. Eu a amava. Rick também parecia amá-la.
Um sorriso abrigou meus lábios enquanto voltava por meu caminho até o metrô.
Eu teria um caso de amor com a dança.

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