quinta-feira, 21 de maio de 2009

Capítulo Dois.

A Starbucks estava lotada naquela tarde. Meu cappuccino já chegara ao fim, e tinha que ler os textos de Shakespeare para sexta, mas eu não estava nem um pouco com vontade de voltar para casa.
Eu poderia dizer que New York é o melhor lugar do mundo para se ver todo o tipo de pessoa. À minha direita estava uma típica filhinha de papai rica, com sua roupa da Gucci e seus sapatos Channel, as centenas de sacolas de compras ao seu redor, o último modelo de celular lançado em sua orelha e a voz mais irritante saindo de sua boca. À minha esquerda estava uma executiva brigando com o marido no telefone, gritando – mais precisamente – sobre o divórcio. Ela quase chorava sobre a guarda das crianças e sobre a pensão, dizendo que não conseguiria sozinha.
Mas, o que eu era? Uma garota de 17 – ok, 16 – anos com uma calça jeans skinny e uma jaqueta preta?
Ah, e claro, com os sapatos de tango na bolsa. E sem meu iPod. Ugh.
Idealizei passar no estúdio. Era quase impossível. Tirando o fato que eu precisava do meu iPod – por motivos como: a falta de música me matar, os arquivos do meu trabalho para semana que vem estarem nele – eu não podia retornar a ver o dono do estúdio. Eu não me permitiria ficar tão chocada com sua presença como da primeira vez. Bonito demais, misterioso demais, perigoso demais. Só atrapalharia as coisas. Mas a vontade de voltar a dançar quase me torturava. Pela primeira vez depois de tantos meses eu me senti leve, completa. Aquele estúdio me passara uma confiança que jamais adquirira. Se não voltasse logo, talvez a perdesse, o que não estava nos meus planos. Eu ia ter que achar um novo estúdio rápido, mesmo achando impossível. Onde encontraria um salão como aquele novamente?
Decidi que era melhor eu voltar para casa. A cafeteria estava enchendo mais e mais com os vários tipos de pessoa e me deixando claustrofóbica. Não ia ter como fugir de Shakespeare agora. Um pequeno sereno caia do céu, mas eu não me importava.
Quando pude respirar o ar gelado ao contrário do abafado de dentro do lugar, relaxei. O metrô mais perto dali era há 10 minutos, e eu não tinha tanta pressa.
E mais perto ainda estava o estúdio de dança.
Metrô, metrô, metrô. Pare com isso.
Comecei a andar à deriva, na direção do metrô. A noite se apoderava do céu rápido demais, e a falta de postes de luz prejudicava a rua. O sereno parecia aumentar a cada passo, até que virou gotas espessas de água. Em segundos, se transformara em uma grande pancada, deixando tudo que estava à vista embaçado e eu, encharcada. Pessoas tentavam – e definitivamente não conseguiam – não trombar comigo com seus guarda-chuvas. Elas corriam para lugares secos e quentes, ao invés daquela rua. Eu corria sem rumo, cegada pela chuva, com o único desejo de achar um lugar com teto, pelo menos. Starbucks já havia ficado para trás, o metrô continuava longe demais, e uma familiar porta não me deu chances de pensar seriamente sobre o assunto.
Adentrei sem hesitar e encostei-me na lateral da parede perto a escada, arquejando, pegando lufadas de ar para tentar normalizar meu frenético coração. Tudo estava muito escuro ali, mal dava para ver a escada a não ser pela luz da janela na porta. O cheiro de cigarro, menta e conhaque (ou um péssimo vinho) estavam bem fortes, principalmente o de cigarro – eu quase podia sentir a fumaça. Meu cabelo pingava, a maquiagem preta de meus olhos deveria estar um pouco borrada. Minha respiração não parecia querer desacelerar.
“Você é, com certeza, a intrusa mais bonita que eu já vi.”
A voz que eu mais temia escutar vinha de mais perto do que eu imaginava. Meus olhos se focaram, então, na parede à minha frente onde ele estava encostado tranqüilamente, fumando. A parte dos seus olhos incrivelmente verdes e de sua testa eram as únicas iluminadas por completo pela luz da porta, mas eu vi a sombra da fumaça saindo de seus lábios.
“Você voltou.” ele disse, sorrindo e pegando uma tragada.
“Era o lugar seco mais perto.” Como meu coração voltaria ao normal agora?
“Bom para você.” Riu baixinho e soltou uma corrente de fumaça branca. Começou a caminhar até mim e se inclinou – como sempre, perto demais – para mim, colocando uma das mãos na parede esquerda em que eu me apoiava. Abaixou a cabeça até ficar no nível da minha, e eu não tinha certeza de onde estava, muito menos sabia como respirar.
“Hoje vai dançar comigo? Eu não esquecerei isso muito fácil.” Sua respiração quente tocou meu rosto com seu cheiro de cigarro concentrado. Perto demais, perto demais. Eu ainda não tinha respondido e estava extasiada. O que eu poderia fazer agora? Ele voltou a rir, triunfante, me olhando fixamente nos olhos.
Não, não, não, não!
“Eu estou encharcada e preciso chegar em casa logo.” Me desvencilhei de seu olhar e tentei passar por debaixo de seu braço que ainda estava na parede. Imediatamente, ele ficou na mesma posição de antes, só que agora de um jeito que era impossível passar.
“Não tão rápido. Ainda está chovendo lá fora, é melhor esperar um pouco.”
Olhei freneticamente para a janela da porta no vão de seu braço, vendo que a chuva não havia diminuído nem um pouco. Bufei acabada. A chuva iria realmente demorar muito.
“Você não tem escolha.”
“Eu não vou dançar com você.” Eu consegui dizer. “Estou pingando! Mas que diabos de persistência.”
“Você invadiu o meu estúdio. Achou que ia se livrar fácil?”
“Ninguém me dissera que era seu.”
“Procurasse antes de se aproveitar dele. Isso é crime, sabia?”
“Porque apenas não me expulsa? Para que dançar?” Agora eu estava realmente furiosa. Ele era impossível!
“Não expulsaria alguém que dança tão bem” Ele sorriu, inclinando a cabeça para mais perto da minha. “Nesse princípio, é até bom ter uma intrusa como você por aqui.”
“Sério? Meu deus, mudou a minha vida agora!” Ironia pesada, bem pesada.
“Não sei da sua, mas a minha mudou.” O sorriso desapareceu, e de repente ele estava sério novamente. O penetrante olhar verde queimando o meu castanho-claro.
Uma convulsão de risos nervosos explodiu de mim.
“Ok, se queria me ver rir, conseguiu!” Eu não tinha certeza se achara realmente engraçada aquela observação, mas que estava rindo de nervosismo, eu tinha certeza. Estava quase escrito na minha testa.
“Isso não foi uma piada.” Ele estava sério, ainda, e perto demais – quase normal – mas seu olhar vacilava do sério para o risonho. Ele deveria estar considerando deixar essa passar como mais uma piada.
“Ok, hm...” Me soltei de seu olhar, me dando segundos para uma respiração uniforme. Comecei a subir as escadas – mesmo não querendo prolongar esse encontro peculiar; meus passos faziam barulhos engraçados, deixando marcas de poças D’água. Ouvi seu riso baixo atrás de mim, enquanto ele subia atrás.
“A propósito...” Ele disse, e eu implorei mentalmente para não voltar com o assunto sentimental. Eu não deveria ter me importado tanto com o que ele disse. “Estou com seu iPod.” E um sorriso em sua voz.
Claro que ele percebeu meu esquecido.
“Pode me devolver?” A música poderia salvar essa noite. Eu definitivamente não ia suportar pensar sobre isso quando fosse dormir.
“Ele não está aqui.”
Oh deus.
“Eu preciso dele!”
“Só voltou para pegá-lo?”
“Claro! Porque mais voltaria?” Pelo iPod, não é? E um lugar seco.
Silêncio. Um sorrindo se arreganhando até os dentes reluzirem fracos na escuridão.
“Dançar.” Ele disse enfim. “Comigo.”
“Já disse, não tenho tempo para isso. Seria mais fácil apenas me expulsar.”
“Eu acho mais fácil você dançar comigo. O que a impede?”
“Tempo.” Ou me prevenindo de sofrer de um ataque de coração com você chegando perto demais com seu cheiro forte demais de menta e tabaco, ou seu sorriso bonito demais para Nova York, principalmente para esse estúdio de dança. Eu quase disse. Agradeço ao meu cérebro não ter explodido esse pensamento em palavras.
“Eu posso arranjar um pouco para você.” E ele se aproxima novamente. Seus olhos de esmeralda me segurando como se fosse cravada ali.
Eu não ia deixar nada ficar marcado em minha mente para pensamentos futuros. Eu não me atreveria a conjeturar por que meu coração não voltara aos batimentos normais. O jeito era me distanciar de seus passos e fazer uma brincadeira inoportuna, me fazendo de completa idiota, como sempre.
“Você poderia...” E minha frase morreu, minha voz sumindo, minha respiração voltando a ficar alta demais. A aproximação dele. Eu começara a odiar isso de uma forma não muito normal. Tentei de novo. “... poderia me arranjar uma toalha. Eu agradeceria imensamente.”
“Não tem toalhas aqui, sinto muito.”
Ótimo.
“Hm. Eu... preciso ir, mesmo.” Me confirmei pela janela. Os deuses me ajudavam. A chuva estava quase terminada. Soltei um longo suspiro.
Quando me voltei para olhá-lo, ele tinha avançado mais passos do que eu poderia ouvir e estava perto, novamente. Estendeu sua mão para mim no curto espaço entre nós e eu fiquei parada, completamente imóvel, sem respirar. Eu quase ouvia nossas respirações; o som das gotas de água se desprendendo de minha roupa e caindo no piso. Ele afagou meu rosto com a ponta dos dedos. Seu sorriso estava um pouco desmoronado, uma tristeza incrível nos olhos esmeralda, mas logo voltou com todo o seu poder de persuasão e vitória.
“Você voltará.” Ele disse, parando de afagar meu rosto. “Pelo menos pelo seu iPod.” E riu.
Agora foi a minha vez de ter um sorriso derrotado. Meu iPod. Meu querido companheiro de música esquecido pela primeira vez que conheci o misterioso dono do melhor estúdio de dança do meu conhecimento. Ele era quase um culpado – ou o iPod ou esse na minha frente.
Derrotada, acenei com a cabeça e uma tentativa de sorriso nos lábios. Se ficasse mais um pouco ali, ou pegaria um belo resfriado, ou ele daria mais passos para a minha direção – e eu estava apavorada em saber da minha reação, que poderia ser completamente o contrário do que eu me deixara – com seus olhos totalmente dominadores, ou pior: teria que dançar com ele.
Corri pelas escadas, e uma estranha sensação de déjà vu me invadiu. A chuva estava impiedosa novamente, e eu só prestei atenção em meus pés e nas poças de água. Eu sabia no que meus pensamentos me levariam, e eu adoraria poder evitar.
Sempre fugindo, dizia uma ridícula e hipócrita voz. Fugindo, sua covarde! Dançar agora se tornará seu maior medo, por causa dele. Você sabe que ele vai tomar o lugar do outro. Você está curiosa sobre ele. Porque acha que seu coração tropeça tanto quando o vê? E você sabe que está começando a sentir aquilo novamente...
Cale a boca. Dessa vez foi a minha voz. Consciência idiota.
Atrás de mim vieram seus passos. Uma tremedeira correu minha espinha inteira e não era por minha roupa estar úmida e fria. Ele não disse nada, e o cheiro de cigarro recém fumado não chegou tão perto. Ele apenas jogou algo pesado e liso sobre meus ombros e voltou a subir as escadas. Analisei o conteúdo; era uma jaqueta de couro marrom, quente e seca.
Seja o que for agora. Um resfriado, um trabalho atrasado e uma volta ao estúdio de dança eram coisas inevitáveis. Infelizmente.
O pior de todos os outros fatos estavam por baixo de minhas pálpebras cansadas:
O olhar penetrante perfeitamente verde que eu queria não me lembrar.
E meu coração voltando a ficar histérico.
De novo.


Obrigada.

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