terça-feira, 9 de junho de 2009

Capítulo Quatro.

O elevador do velho apartamento no Brooklyn parecia estar ficando mais lento a cada segundo – e eu não precisava duvidar. Sam vivia aqui desde que tinha nascido, pelo que eu sabia, e o prédio já era velho na época que fora comprado. O elevador enfim parou no andar 15, e enquanto a porta lutava por abrir, o rosto alegre enfeitado com aquela cabeleira ruiva saltitou na minha frente.
“J! Você demorou! Fiquei preocupada.” Vai ser muito comum eu utilizar a exclamação nas citações dela. Ela sempre está explodindo de felicidade. E, ah, eu devo não ter citado, mas ela tem uma forte mania de te apelidar de várias formas. Se você não encontra uma abreviação simples para o seu nome (como no caso o meu), ela arranja trezentos. J é um deles.
“Eu não demorei tanto assim. Estou... bom, 20 minutos atrasada. Nem vem Sam, você sabe como é a ponte e o metrô às 5hrs da tarde.” Disse, tentando passar por ela.
“Então você passou no estúdio? Por isso demorou tanto? Ah me conte tudo! Eu sabia, eu sabia que você ia acabar voltando!” e rodopiou pelo hall, pulando de um lado para o outro. Seu cabelo parecia estar em chamas, ofuscante e brilhante, sacudindo-se no ar.
“Sam, acalme-se. Eu não passei no estúdio.” E mostrei o casaco de couro em meus braços.
Como – justamente – fogo sendo apagado, ela parou, e toda a atividade balançante de seu cabelo acabou junto. Ela meio que parecia chateada, para baixo de repente, e se arrastou até mim para tocar o casaco como querendo provar para si mesma que era real.
“Mas... J, porque não voltou? Você precisa.” Ela parecia muito triste agora. E o grande problema é que Sam é o tipo de pessoa que te contagia em todos os humores. Se você vê-la para baixo, se sente obrigada a reconfortá-la, mas acaba ficando mais deprimida ainda por perceber que não consegue salvá-la. Eu culpo isso ao teatro que ela nunca parou de freqüentar. E aos olhos claros que suplicam. Argh.
Ok Sam, você venceu.
“Está bem! Amanhã eu passo lá.” E toda a melancolia teatral já era. Ela disparou seus braços em meu pescoço e deu-me um abraço de urso.
“Obrigada, obrigada, obrigada!” gritou, dando beijinhos nas minhas bochechas.
Ri – não podendo evitar – e me desvencilhei de seu abraço, jogando-me na grande poltrona existente na sala. Sam era a típica garota com pais felizes, e o estilo de moda que ela seguia vinha deles igualmente. Ela fazia bijuterias, re-decorava bolsas e confeccionava roupas. Não estou brincando. A maioria das coisas que ela vestia eram compradas em brechós – como a maioria das minhas roupas, também – e ela dava um toque de Samantha, um “Sam’s Point”, como ela mesma inventara. Não era de meu espanto, naquela tarde, na hora que mergulhei em seu sofá estofado, ter esmagado uma porção de tecidos e estampas junto.
“Então... vai me explicar porque está aqui?” disse Sam, sentando de pernas cruzadas em uma mesinha à minha frente.
“Eu precisava de um lugar para ficar.”
“Eu jurava que você tinha casa, amiga.”
Com toda a certeza Sam pensou que eu ia acertá-la com um travesseiro nessa hora, tanto que se protegeu com as mãos, mas não foi o que eu fiz. Estava mergulhada demais em pensamentos para isso.
“Qual é o problema?” sussurrou, e esfregou uma de suas mãos macias e rosadas em meu braço, tentando tranqüilizar – como sempre. Um olhar triste permanecia em seu rosto com sardas fracas.
“Nenhum. Eu só precisava de um lugar que não fosse a minha casa, para relaxar.” Mas ela sabia que tinha algum problema. Uma pausa definitivamente longa.
“... Quer falar sobre isso?”
“Talvez.” Só que eu não queria falar nada.
“... Ou não.” Deduziu hesitante.
Sam era realmente ótima nisso, digo, em ser amiga dos outros. Porque enquanto eu era uma pilha de nervos, ela era paciente o bastante para ficar esfregando meu braço, tentando acalmar a nervosa e irracional garota que eu era.
A questão era que eu não sabia realmente o porquê que eu era uma pilha de nervos.
Eu suspeitava de algumas coisas, mas nenhuma realmente parecia ser uma boa razão para eu estar literalmente explodindo por baixo da máscara serena, mergulhada em memórias, que meu rosto demonstrava.
Eu havia, recentemente – mais precisamente, essa manhã – encontrado fotos minhas. E não eram só minhas. Eram dele também. Do Matt. Abraçando-me, beijando meu rosto, ajudando nas sessões de foto para os concursos fotográficos com temas sobre amor. Amor. Depois, eu reencontrei a lente analógica que ele dera no meu último aniversário antes de sair da minha vida. Uma lente para fotos retrato. Uma lente que fiquei procurando por boa porção de tempo apenas para poder quebrá-la com as minhas mãos, mesmo achando um desperdício, já que as lentes ficam mais caras a cada segundo e aquela era uma das boas.
Mas eu pensava “é apenas mais uma lembrança do Matt, então, o que importa, se o resto já está quebrado?”.
Talvez eu não quisesse voltar para casa por isso. Talvez fosse porque, ao entrar em meu quarto, encontraria a grande mala parisiense com todas as nossas lembranças estendida no chão, as fotos Polaroid jogadas em todos os cantos, as fitas, os cartões, as correspondências, meu antigo diário... Dignamente, o passado inteiro. O passado que deixara minha melhor amiga triste por não conseguir me ajudar. O passado que deixou minha mãe achando que eu ia entrar em coma eterno. O passado que me deixou afastada dos sapatos de dança por tempo desnecessário. O passado que eu superara com meus próprios pés (e com um par de olhos verdes).
Sam, que eu não tinha percebido ter saído, voltava agora com duas grandes canecas, que na lateral, saindo da boca cheia de fumaça, pendiam um fiozinho. Chá. Ela adorava chá, e eu só adorava o chá dela.
Peguei a caneca, já me sentando, e comecei a soprá-lo. Dava para sentir, ao tocá-lo, o quão quente estava. O cheiro de hortelã e chocolate subia e fervia meu nariz de forma agradável. Era ótimo.
Dei meu primeiro gole, deliciando-me com a sensação de alívio que saia de meus ombros aos poucos, e fiz uma pequena reverência. Ela riu.
“Tão bom assim?”
“Excelente.” E tomei mais um grande gole.
“Quer falar agora?”
Silêncio. Meus olhos encaravam a fumaça que seguia o teto.
“Eu encontrei.”
Não precisava dizer mais nada, ela sabia do que eu falava. Mesmo assim, um toque corajoso e muito determinado a mudou. Ela encarava a situação com um pouco de raiva. Eu preferia isso. Pelo menos a raiva não te deixa em coma mental.
“Quer que eu a mande para a China?”
“Não. Já está mais do que na hora de eu encarar aquilo.”
Silêncio novamente, até ela interromper, alvoroçada com as palavras, mas não do jeito alegre de sempre; e sim o jeito mais necessitado que eu já ouvira.
“Jannie, você superou. Quero dizer, você finalmente voltou a dançar. Oh deus, você voltou! Não deixe a tristeza te afundar de novo... por mim. Pelos seus pés. Eles devem agradecer por você enfim usá-los novamente.” Uma pausa. Ela encara meu rosto mais duramente, a dor nos olhos de cristal. “Esqueça-o.”
E naquela hora, senti-me uma verdadeira ingrata. Sam se preocupava comigo, e olha o que eu a dava de retorno: mais preocupação. Nunca tinha notado o quanto lhe causei. Ela ajudava-me, e eu só dei a ela mais peso. Agora, iria fazer isso por nós duas.
E foi o que eu fiz. Quando entrava em casa e não me importava com as luzes, disparando para o meu quarto, pegando a mala, fechando ela e enfiando no sótão. As minhas melhores fotos foram daquela época. Não ia poder trancar o passado desse jeito, eu sabia que não, mas algo me impedia de jogá-lo pela janela, simplesmente. Um dia, ah é, um dia eu riria de tudo aquilo. Re-abriria aquela mala com um sorriso no meio do rosto, espirrando contra a poeira que iria se formar, e lembraria de tudo aquilo. Eu não posso afirmar quem estaria ao meu lado, mas ia acontecer.
Depois de terminado, tomei um banho. A ausente mãe que possuía ainda não havia chego, como sempre. Meu pescoço pinicava, sentia a ausência de algo que eu não me recordava. Lembrei-me da promessa que fizera à Sam, que iria voltar ao estúdio amanhã, e eu duvidava drasticamente que eu o faria. Empolei-me na cama depois da maratona de lição de casa de Biologia e desejei dormir muito profundamente, para afastar os pesadelos que viriam.

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